quinta-feira, 3 de junho de 2010

Mãos Enferrujadas

Quando Joaquim Sucupira abandonou o corpo, depois dos sessenta anos, deixou-nos conhecidos a impressão de que subiria incontinenti aos Céus. Vivera arredado do mundo, no conforto precioso que herdara dos pais. Falava pouco, andava menos, agia nunca.
        Era visto invariavelmente em trajes impecáveis. A gravata ostentava sempre uma pérola de alto preço, pequena orquídea assinalava a lapela e o lenço, admiravelmente dobrado, caía, irrepreensível, do bolso mirim. O rosto denunciava-lhe o apurado culto às madeiras distintas. Buscava, no barbeiro cuidadoso cada manhã, renovada expressão juvenil. Os cabelos bem postos, embora escassos, cobriam-lhe o crânio com o esmero possível.
        Dizia-se cristão e, realmente, se vivia isolado, não fazia mal sequer a uma formiga. Assegurava, porém, o pavor que o possuía, ante os religiosos de todos os matizes. Detestava os padrões católicos, criticava as organizações protestantes e categorizava os espiritistas no rol dos loucos. Aceitava Jesus a seu modo, não segundo o próprio Jesus.
        As facilidades econômicas transitórias adiavam-lhe as lições benfeitoras do concurso fraterno, no campo da vida.
        Estudava, estudava, estudava...
        E cada vez mais se convencia de que as melhores diretrizes eram as dele mesmo. Afastamento individual para evitar complicações e desgostos. Admitia, sem rebuços, que assim efetuaria preparação adequada para a existência depois do sepulcro. Em vista disso, a desencarnação de homem tão cauteloso em preservar-se, passaria por viagem sem escalas com o destino à Corte Celeste.
        Dava aos familiares dinheiro suficiente para aventuras e fantasias, a fim de não ser incomodado por eles; distribuía esmolas vultuosas, para que os problemas de caridade não lhe visitassem o lar; afastava-se do mundo para não pecar. Não seria Joaquim - perguntavam amigos íntimos - o tipo religioso perfeito? Distante de todas as complicações da experiência humana, pela força da fortuna sólida que herdara dos parentes, seria impossível que não conquistasse o paraíso.
        Contudo, a responsabilidade que o defrontava agora não correspondia à expectativa geral.
        Sucupira, desencarnado, ingressava numa esfera de ação, dentro da qual parecia não ser percebido pelos grandes servidores celestiais. Via-os em movimentação brilhante, nos campos e nas cidades. Segredavam ordens divinas aos ouvidos de todas as pessoas em serviços dignos. Chegara a ver um anjo singularmente abraçado à velha cozinheira analfabeta.
        Em se aproximando, todavia, dos Mensageiros do Céu, não era por eles atendido.
        Conseguia andar, ver, ouvir, pensar. No entanto - desventurado Joaquim! - as mãos e os braços mantinham-se inertes. Semelhavam-se a antenas de mármore, irremediavelmente ligadas ao corpo espiritual. Se intentava matar a sede ou a fome, obrigava-se a cair de bruços porque não dispunha de mãos amigas que o ajudassem.
        Muito tempo suportara semelhante infortúnio, multiplicando apelos e lágrimas, quando foi conduzido por entidade caridosa a pequeno tribunal de socorro, que funcionava de tempos em tempos, nas regiões inferiores onde vivia compungido.
        O benfeitor que desempenhava ali funções de juiz, reunida a assembléia de Espíritos penitentes, declarou não contar com muito tempo, em face das obrigações que o prendiam nos círculos mais altos e que viera até ali somente para liquidar casos mais dolorosos e urgentes.
        Devotados companheiros do bem selecionavam a meia dúzia de sofredores que poderiam ser ouvidos, dentre os quais, por último, figurou Sucupira, a exibir os braços petrificados.
        Chorou, rogou, lamuriou-se. Quando pareceu disposto a fazer o relatório geral e circunstanciado da existência finda, o julgador obtemperou:
        - Não, meu amigo, não trate de sua biografia. O tempo é curto. Vamos ao que interessa.
        Examinou-o detidamente e observou, passados alguns instantes:
        - Sua maravilhosa acuidade mental demonstra que estudou muitíssimo.
        Fez pequeno intervalo e entrou a argüir:
        - Joaquim, você era casado?
  - Sim.
        - Zelava a residência?
        - Minha mulher cuida de tudo.
        - Foi pai?
       - Sim.
        - Cuidava dos filhos em pequeninos?
     - Tínhamos suficiente número de criadas e amas.
        - E quando jovens?
     - Eram naturalmente entregues aos professores.
        - Exerceu alguma profissão útil?
    - Não tinha necessidade de trabalhar para ganhar o pão.
        - Nunca sofreu dor de cabeça pelos amigos?
      - Sempre fugi, receoso, das amizades. Não queria prejudicar, nem ser prejudicado.
        O julgador interrompeu-se, refletiu longamente e prosseguiu:
        - Você adotou alguma religião?
      - Sim, eu era cristão - esclareceu Sucupira.
        - Ajudava os católicos?
  - Não. Detestava os sacerdotes.
        - Cooperava com as Igrejas reformadas?
  - De modo algum. São excessivamente intolerantes.
        - Acompanhava os espíritas?
       - Não. Temia-lhes presença.
        - Amparou doentes, em nome de Cristo?
       - A terra tem numerosos enfermeiros.
        - Auxiliou criancinhas abandonadas?
       - Há creches por toda parte.
        - Escreveu alguma página consoladora?
        - Para quê? O mundo está cheio de livros e escritores.
        - Utilizava o martelo ou o pincel?
        - Absolutamente.
        - Socorreu animais desprotegidos?
        - Não.
        - Agradava-lhe cultivar a terra?
        - Nunca.
        - Plantou árvores benfeitoras?
        - Também não.
        - Dedicou-se ao serviço de condução das águas, protegendo paisagens empobrecidas?
        Sucupira fez um gesto de desdém e informou:
        - Jamais pensei nisto.
        O instrutor indagou-lhe sobre todas as atividades dignas conhecidas no Planeta. Ao fim do interrogatório, opinou sem delongas:
        - Seu caso explica-se: você tem as mãos enferrujadas.
        Ante à careta do interlocutor amargurado, esclareceu:
        - É o talento não usado, meu amigo. Seu remédio é regressar à lição. Repita o curso terrestre.
        Joaquim, confundido, desejava mais amplas elucidações.
        O juiz, porém, sem tempo de ouvi-lo, entregou-o aos cuidados de outro companheiro.
        Rogério, carioca desencarnado, tipo 1945, recebeu-o de semblante amável e feliz, após escutar-lhe compridas lamentações, convidou, pacientemente:
        - Vamos, Sucupira. Você entrará na fila em breves dias.
        - Fila? - interrogou o infeliz, boquiaberto.
        - Sim - acrescentou o alegre ajudante -, na fila da reencarnação.
        E, puxando o paralítico pelos ombros, concluía, sorrindo:
        - O que você precisa, Joaquim é de movimentação...

 

Texto extraído da Apostila de Estudo Sistematizado
da Doutrina Espírita - ESDE - FEB

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